O CASTELO DO BARBA AZUL - VERSÃO DA ADAPTAÇÃO PARA ÓPERA E SIGNIFICADOS SIMBÓLICOS
O CASTELO DO BARBA AZUL
(Interpretação da adaptação de Béla Bartók para a ópera - Nota publicada em jornal na época-
"A primeira e bem-sucedida incursão do diretor teatral Felipe Hirsch no universo lírico, O Castelo do Barba-Azul, única ópera do compositor húngaro Béla Bartók, chega ao palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro neste fim de semana. Serão quatro apresentações a partir de domingo.
Exibida originalmente em Belo Horizonte, em 2006, a montagem foi duplamente premiada no XII Prêmio Carlos Gomes como a melhor ópera de 2008 — ano em que foi apresentada em São Paulo — e como melhor cenário, criado por Daniela Thomas, que assina também os figurinos. “Encerramos a temporada lírica de 2011 com esta bela montagem da única ópera de Bartók, que já estava em nossos planos desde o ano passado”, diz Carla Camurati, presidente da Fundação Theatro Municipal".)
Para quem quiser conhecer a versão original e uma riquíssima interpretação psicológica da história do Barba Azul, sugiro o livro de Clarisse Pinkolas Estés: "Mulheres que correm com Lobos". Ela conta e interpreta de maneira brilhante essa história, da perspectiva da psique feminina, pois a personagem central é uma sobrevivente do Barba azul. Nessa história o Conde vai viajar, mas antes entrega todas as chaves do castelo à sua mais nova esposa. Porém lhe diz que ela pode abrir todas as portas do castelo menos uma. E dizendo isso lhe entrega uma pequena chave de um quarto que na verdade é uma armadilha, a qual pela curiosidade feminina, nenhuma de suas mulhere conseguiu resistir.
A versão da ópera é bastante diferente.
MITOS E CONTOS DE FADA EM BUSCA DE SEUS SIGNIFICADOS
O CASTELO DO BARBA AZUL - Versão da Ópera
Em 2011, fui assistir uma ópera no Teatro Municipal intitulada “O Barba Azul”.
Fascinada por simbolismos, antes de ir fiquei pensando no quanto essa história é rica de significados.
Cheguei ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro com uma grande espectativa.
Qual não foi minha surpresa quando vi o palco quase nu, apenas com uma rampa dividida em sete blocos. Isso é totalmente inovador em cenários de óperas. Depois descobri que, cada bloco era uma porta do castelo do Barba Azul.
Surpresa ainda maior foi a irreverência do diretor: logo no início entrou um ator que convidou a platéia a fechar os olhos e visualizar o cenário com o olhar interior. Isso é totalmente simbólico e dessa forma tornou a ópera ainda mais fascinante pra mim!
Em uma narrativa fantástica, em português e sem cantar, expressando-se numa linguagem sofisticada e poética, cheia de imagens, ele fez com que de fato enxergássemos o que narrava. Deixou claro que tudo se passava no interior da psique de cada um de nós. Ousou até mesmo perguntar quem eram os atores, dizendo que naquele momento ele via os atores diante dele, na platéia... Fiquei pasma!
Então veio a ópera.
O cenário ousou ainda mais, utilizando-se de uma linguagem multi-mídia com projeções em cena, que nos davam uma sensação de terceira dimenção ao mesmo tempo que de sonho e irrealidade. As portas se abrem, mas os espectadores não vêem o que está ali dentro, a não ser pela narrativa da mulher do Barba Azul que é riquíssima em detalhes, e nos faz enchergar com os olhos da mente, como nos convidou o "Mestre de Cerimônias", a princípio. As projeções enriqueceram e deram a arte final da obra.
Podemos interpretar os contos, como interpretamos os sonhos, pois ambos nos chegam através do inconsciente. E também olhar para as personagens como as forças masculinas e femininas existentes em cada um de nós. O yin e o yang da cultura oriental. O animus e a anima de Jung.
A versão da Ópera é diferente da história que conhecemos, apresentando apenas um casal de personagens. A perspectiva me parece ser masculina, pois o Conde está presente o tempo todo, o que não acontece na história que conhecemos. Por tanto a mulher parece representar aqui a parte feminina do homem, sua anima, sua função sentimento. Nesta versão, as portas do castelo estão fechadas à chave, mas o Conde não quer entregá-las à sua jovem esposa. Elas simbolizam uma barreira psíquica que ele não quer, ou não está preparado para abrir. A jovem não sossega em quanto não faz com que seu companheiro se vire do avesso, cedendo, abrindo todas as portas. A última ele abre de joelhos. Aqui me parece haver uma troca de papéis, um desequilíbrio entre o masculino e o feminino, pois o lado feminino parece agir como a esfinge, querendo ser a guardiã de todas as entradas proibidas. Leoa alada com cabeça humana, enigmática e cruel, espécie de monstro temível, onde se vê o feminino pervertido, o símbolo da dominação perversa.
Na primeira porta ela encontra armas manchadas de sangue. Quem nunca teve que lutar na sua vida? No entanto em uma guerra, não há vencedores nem vencidos. Existem perdas e feridas de ambos os lados.
Na segunda porta instrumentos de tortura, também manchados de sangue. Quem nunca se torturou com sentimentos de culpa, por exemplo... Quem nunca torturou psicológicamente uma pessoa amada, cometendo um erro de julgamento, uma atitude equivocada, um erro.O sangue é vida. Diante da tortura houve perda de sangue. A perda de sangue significa uma desvitalização.
Na terceira porta ela encontra riquezas, jóias, que são feitas de metais preciosos, carregados de segredos da imortalidade, por tanto, interpreto como as riquezas do espírito. Elas também estão manchadas de sangue. O sangue é o princípio corporal, veículo das paixões. O vermelho está associado ao fogo. Uma pessoa apaixonada se diz ardendo de desejo... Talvez a natureza ardente da alma desse Nobre esteja aí representada. Mas a mancha também pode ser o efeito do envelhecimento das coisas que se desgastam. A natureza ardente dessa alma foi desgastada, está cansada, consumida, talvez por isso tenha sido trancada dentro de si.
O castelo estava mergulhado na escuridão, ou seja, nas sombras, no inconsciente. O castelo é gelado e húmido. A hunidade escorre pelas paredes.
Como paredes de uma casa tomada pelo gelo invernal tardio que se insinua e derrete lentamente escorrendo para dentro.
Muitas pessoas choram interiormente, sem mostrar nada, por muito tempo.
Da quarta porta aberta, entra luz, o simbolismo da saída das trevas. No início da Ópera, a Mulher havia reclamado da escuridão do Castelo. Ele havia dito que se acostumara assim. A luz entrou. Houve a libertação. Ele abre os braços e diz:”Você queria a luz. A casa está inundada de luz! Venha, me abrace, me beije, me ame! Eu amo você!” Estas palavras me confirmam que nesta versão o Barba Azul, pode ter tido seu passado obscuro como qualquer mortal, mas está aberto para o amor e para as mudanças positivas consequentes deste sentimento.
Mas a insistência da mulher continua. Ela não está satisfeita. È como uma auto-sabotagem, em que o princípio feminino se enterra em seus próprios medos e desconfianças.Ela exige que ele abra a quinta porta.
Da quinta porta aberta ela vê as terras do Nobre que se estendem “até onde a vista alcança”. A terra é um símbolo de fecundidade e regeneração. Está cheia de rosas, mas a jovem vê sangue nas rosas, apesar do Barba Azul dizer que ela está "vendo coisas" e que este sangue não existe. Não vejo negatividade neste simbolismo desta visão, pois na iconografia cristã a rosa representa a taça que recolhe o sangue de Cristo.
Esta imagem evoca o Graal. A taça de vida, a alma, o coração, o amor. Mas a jovem não consegue se sentir satisfeita.
O nobre se recusa a abrir as outras duas portas. Porém diante de tamanha insistência ele cede.
Neste momento fecha-se a porta por onde entrava a luz, fazendo o castelo voltar para a escuridão. Isto é bastante simbólico. O retorno à escuridão nos fala da perda da oportunidade de se afastar do que havia de mais sombrio no Castelo. Aqui, talvez, se houvesse uma concessão, se houvesse um meio termo, se a psique revirasse seu interior com um propósito positivo, querendo enchergar uma maneira de lidar com o que há de negativo e preservar o que há de valioso, talvez pudesse se sentir livre para caminhar entre as rosas e não permanecer mais na velha história.
" Vamos caminhar pelos jardins floridos e nos esquecer do que um dia causou tanta dor..."
Mas não havia essa possibilidade, pois a mulher queria continuar a todo o custo. Talvez ela represente aqui a culpa que insiste em reviver e remoer os erros cometidos no passado. Não esquecendo que o homem pode fazer isso consigo mesmo, sabotando-se e cosequentemente sabotando o relacionamento com qualquer pessoa. Isso também pode acontecer no relacionamento com sua companheira, querendo se apoderar e revolver todo o passado dela, apenas para julga-la, impossibilitando qualquer tipo de relacionamento saudável. Ou ainda atrair o tipo de mulher sufocante que quer se apoderar de toda a vida, de todos os seus segredos e julga o masculino submetendo-o a uma verdadeira tortura em sua vida.
A sexta porta contém um lago, que ele revela ser feito de lágrimas. Na expressão corporal do ator, nota-se o quanto o personagem está sofrendo por ter ido tão longe, tão profundo de maneira tão brusca em seu interior. Mas a jovem não dá atenção a isso, sempre julgando e tirando suas próprias conclusões. A lágrima é o símbolo da dor, mas a gota morre após dar seu testemunho. No entanto, um lago de lágrimas simboliza o olho que chorou demais. Ela quer saber de quem são essas lágrimas, o que fica claro para a platéia, diante da expressão corporal de sofrimento do Conde que mesmo que tenha havido lágrimas de outras pessoas, as lágrimas são principalmente dele mesmo!.
Sétima porta. O número sete é riquíssimo em significado. Na numerologia, cada número vibra com um planeta. E assim, através da astrologia, podemos interpretá-los. Segundo a Cabala, o número sete vibra com Netuno. Ele representa espiritualidade, sensibilidade e mistério. É o número da ilusão, mas também o número da cura, dos milagres e da fé. Netuno é o regente astólógico do signo de peixes, e na mandala astrológica este signo ocupa a casa doze, que fala do inconsciente. Trata da arte de transcender a experiência material e terrestre e transfigurar-se através de experiências espirituais. Isto é, deixar algo por algo maior.
Netuno é o Deus dos mares. É fácil se perder em alto mar, pode haver tempestades, ventanias e neblinas que nos impossibilitam de enxergar a ponta do nariz. Muitas vezes nos confundimos com as neblinas de Netuno. Ainda que de posse de uma bússola, se não levarmos em consideração os obstáculos, como por exemplo os furacões, de nada adianta saber para onde fica o norte.
Netuno traz muita intuição, mas também pode trazer a paranóia. A fuga, a embriaguez e a loucura também são possibilidades trazidas por esse planeta.
A questão é que essa energia é muito violenta para ser sentida pela maioria das pessoas, que geralmente a vivenciam como uma crise. Há que se tomar muito cuidado.
Diante da perspectiva de abrir a sétima porta, o nobre se contorce, se dobrando e chorando perante a dor da exposição total do seu mais profundo ‘Eu’, sendo totalmente devastado, incompreendido, julgado e condenado a sua revelia.
Enfraquecido e submisso, de joelhos, ele entrega a chave. Nesta porta estão os cadáveres de suas lembranças dolorosas.
De fato todos têm um quarto da devastação dentro de si.
Todos os que assistem a dança da morte, não sobrevivem impunimente. Ela existe. E vê-la, seja de que forma for, é nunca mais esquecê-la.
É literalmente um saltar, um encolher-se, um distorcer-se numa angústia esmagadora. Muitas vezes ela acontece de forma simbólica, mas seja o que for que morre, e nos devasta, nos faz passar por uma espécie de iniciação espiritual, uma transformação de nossos valores.
Neste quarto a jovem vê a imagem das esposas anteriores, que ele revela estarem mortas, mas a jovem as vê vivas. Comparando-se a elas, diz não poder competir com mulheres tão belas e chega a conclusão de que os boatos que ouviu de que o Barba Azul assassinava suas esposas, eram verdadeiros. Mas a própria jovem, sozinha, desce às profundezas se perdendo em seus julgamentos. Ela sofre, mas não percebe que ela mesma está se enterrando ali. Quantas vezes, o medo de que algo aconteça nos faz mentalizar o que não queremos, atraindo para nós mesmos a tão temida desgraça.
Aquii talvez as inseguranças do nobre conde, não suporte qualquer tipo de competição ou comparação. Ou ele tenha o modelo da mãe tão sufocantemente presente em sua vida que não consiga achar mulher nenhuma que possa se comparar a ela. Ou ainda, talvez o modelo de femino devorador presente em sua psique, atraia o tipo de mulher sufocante, que não permite que o homem tenha vida além do relacionamento.
O que quer que o nobre tenha na sétima porta, é um mistério, doloroso.
Não é incomum encontrar corações que passaram por histórias trágicas ou simplesmente dolorosas e precisam de uma limpeza suave. Algumas imagens precisam ser descartadas, outras precisam ser honradas e enterradas decentemente. Muitas vezes certas necessidades psíquicas como o desejo de viver sábia e corajosamente, precisam ser reconstruídas.
A porta fecha-se sobre a mulher, enquanto o Nobre, já se distancia conformado, sumindo na escuridão. Provavelmente, não é a primeira vez que isso acontece. Parece-me um padrão inconsciente e destrutivo de comportamento. A escuridão evoca a noite, que engendrou o sono e a morte, os sonhos e as angústias, a ternura, a ilusão e o engano.
Houve uma tentativa, porém, masculino e feminino não puderam se entender.
Assistir a esta ópera foi uma experiência, bastante intensa.
Mas posso garantir: Vivenciar tal experiência interior é algo muito angustiante.
Bravíssimo, Béla Bartók!